quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Religião vs. saúde mental

Certos psiquiatras encontraram uma relação entre neurose e histeria e religião, que foi confirmada em algumas amostras num contexto de investigação (1). Estudos (*) apontam para que certas crenças e práticas religiosas de alguns pacientes psiquiátricos tenham origem numa predisposição patológica (ex.: pacientes que acreditam estarem possuídos por demónios e que deus fala com eles, etc.) e para que o contacto com a religião e experiências religiosas possam despoletar esses episódios psicóticos, mas outros apontam para que a religião possa servir para os aliviar do stress da doença e mesmo do stress de situações menos agradáveis do dia-a-dia (1,2) (ex.: morte de parentes). É claro que eu poderia propor que, por exemplo para lidar com a morte de um familiar, pode-se simplesmente manter a sua memória viva, até mesmo através de gerações futuras (em vez de uma “alma imortal”, por exemplo). As crenças religiosas não são necessárias para lidar com esse tipo de situações. Há alternativas, provavelmente melhores, uma vez que, segundo o psiquiatra canadiano Wendall Watters, «Tem sido demonstrado que a doutrina cristã e liturgia desencorajam o desenvolvimento de estratégias maduras de “coping” e das aptidões relativas às relações interpessoais que permitem lidar de uma forma adaptativa com a ansiedade causada pelo stress.» (2)
No ramo da psiquiatria há poucos profissionais que defendam opções de tratamento relacionadas com a religião. Essas pérolas raras defendem que se deve até rezar com os pacientes e apelam à intervenção de clérigos quando o psiquiatra utilizar as crenças religiosas do paciente no tratamento – mas o que se está à espera quando por baixo das afiliações do autor do artigo se lê algo como isto: “Center for Spirituality, Theology and Health, Duke University Medical Center, Durham, North Carolina, USA.” É claro que para quem escreveu isto, o maior interesse não é a ciência nem sequer o bem-estar dos pacientes ou as boas práticas num contexto clínico. É propaganda religiosa pura e simples – marketing religioso (1). Não sou contra respeitar as crenças ou antecedentes religiosos do paciente (o que se quer é evitar o conflito entre o psiquiatra ou psicólogo e o paciente e não fomentá-lo, de modo a que se evite sobrecarregar o doente com stress e não se desvie o profissional dos seus objectivos), nem a favor de não as ter em conta, para o bem e para o mal – e nenhum profissional de saúde (mental ou não) que se preze deve ser contra isso (pelo menos metade numa pesquisa não são (2)). Mas uma coisa é respeitar e ter em conta, outra coisa é incluir no tratamento a promoção/apoio de práticas e crenças religiosas dos pacientes como estratégia de “coping” – o psiquiatra deve manter uma posição neutra e promover estratégias alternativas sem desrespeitar as crenças do paciente, podendo ou não contradizer essas crenças conforme apropriado num contexto terapêutico ou não, mesmo que possa ajudar a lidar com a ansiedade em certos casos, até porque é sabido que podem despoletar episódios psicóticos e não se pode ter a certeza na maioria dos casos de que o paciente não tem tendência para esses episódios, podem ter uma base patológica e o psiquiatra não deve ajudar a perpetuar ilusões. Não se devem utilizar essas práticas (a não ser talvez em último dos últimos casos), pois podem ser uma “falsa ajuda” do que uma ajuda (ver citação destacada) e não há estudos que apoiem a ideia de que o “tratamento religioso” é melhor do que o tratamento “não religioso”. Não sou psicóloga nem psiquiatra (tenho apenas 4 créditos de psicologia em todo o curso de ACSP e frequentei algumas aulas de psicologia do desenvolvimento extra), mas não é preciso muito mais que cultura geral básica, consulta das fontes certas e inteligência para ver as possíveis implicações nefastas na saúde do individuo decorrentes dessa prática, além de que seria deseducar a população sem qualquer benefício adicional garantido, uma vez que as crenças religiosas não são confirmadas por qualquer tipo de evidências (pelo contrário) e são tidas como superstição pela maioria dos cientistas (e até psiquiatras e psicólogos).
Relativamente ao assunto da relação entre depressão e religião, há poucos estudos e os resultados pendem para ambos os lados (2).
Uma ocorrência comum é a discriminação de doentes mentais por parte das comunidades religiosas – e uma das causas pode ser a montanha de noções erradas que a própria religião leva a que se instale nessas populações. Outra é o facto das pessoas darem concelhos contrários aos dos profissionais com base na religião e escolherem erradamente não se tratarem com base em crenças religiosas (3). 
Por último mas não menos importante, mesmo que o balanço do "tratamento religioso" e da religião em si fosse positivo em termos de saúde mental, isso não faz das crenças religiosas dos pacientes factos nem teorias cientificamente aceitáveis.   

Notas:
*Exemplos:
Siddle, Ronald; Haddock, Gillian, Tarrier, Nicholas, Faragher, E. Brian (1 March 2002). "Religious delusions in patients admitted to hospital with schizophrenia". Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology 37 (3): 130–138. doi:10.1007/s001270200005.PMID 11990010.
 Mohr, Sylvia; Borras, Laurence, Betrisey, Carine, Pierre-Yves, Brandt, Gilliéron, Christiane, Huguelet, Philippe (1 June 2010). "Delusions with Religious Content in Patients with Psychosis: How They Interact with Spiritual Coping". Psychiatry: Interpersonal and Biological Processes 73 (2): 158–172. doi:10.1521/psyc.2010.73.2.158.
Suhail, Kausar; Ghauri, Shabnam (1 April 2010). "Phenomenology of delusions and hallucinations in schizophrenia by religious convictions". Mental Health, Religion & Culture 13 (3): 245–259. doi:10.1080/13674670903313722.

Referências:

1. “Religion and mental health: what should psychiatrists do?”

Harold G. Koenig, Professor of Psychiatry and behavioral Sciences, Associate Professor of Medicine, Psychiatric Bulletin (2008)32: 201-203doi:10.1192/pb.bp.108.019430 (http://pb.rcpsych.org/content/32/6/201.full

2. Religion, Spirituality, and Mental Health, January 10, 2010, Simon Dein, FRCPsych, PhD – Psychiatric Times (http://www.psychiatrictimes.com/articles/religion-spirituality-and-mental-health)


3. «Module 7: Cultural Perspectives on Mental Health» - Unite for Sight (http://www.uniteforsight.org/mental-health/module7)   

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